sexta-feira, 17 de setembro de 2010

Sobre poker e vida

Jogo poker há algum tempo e, mesmo alternando fases onde estou mais envolvido com o jogo e fases onde fico sem jogar por quase um mês, tem uma hora que a maneira de pensar do jogo se incorpora a sua vida. Se você pega um programa na tv sobre o jogo pára para assistir, de vez em quando pega algum dos livros que tem sobre o jogo para reler, ou quando encontra com algum amigo que joga o papo aparece. E aí você começa a perceber várias semelhanças entre a dinâmica do poker e da vida em geral. Vou tentar escrevê-las de maneira que fique compreensível para os que não entendem muito bem o jogo, sem ficar muito repetitivo para quem já conhece bem.

- O que importa é fazer jogadas + EV.
Poker não é um jogo de sorte, mas o fator sorte pode fazer diferença no curto prazo. Quer dizer que, mesmo você jogando bem e tomando as decisões corretas, quando a aleatoriedade das cartas não te beneficia você pode ter um resultado ruim em uma jogada ou dia específico. Jogadores competentes ligam pouco para isso, pois sabem que, no longo prazo, fazendo a melhor jogada sairão vencedores - até porque a sorte, no longo prazo, vai ser igual para todo mundo. É o que é chamado de "jogada + ev". EV vem do inglês, expected value, é um valor numérico que representa o quanto você pode esperar em média de uma determinada jogada, dada a probabilidade de cada resultado x resultado em si. Se uma jogada tem ev positivo (+ ev), significa que efetuando a mesma jogada diversas vezes, invariavalmente você vai ganhar dinheiro - e o oposto é verdade para jogadas com ev negativo (- ev). É muito comum um jogador experiente aconselhar um jogador mais novo para não ser "orientado pelos resultados"; ou seja, não avalie uma jogada pelo mero resultado direto - se você ganhou ou perdeu - mas sim se você fez a jogada correta - a que teria o EV mais positivo possível.

Com o passar do tempo você nota que o fator "sorte" também é importante na circunstâncias das pessoas na vida. Você pode ter uma filosofia ou religião que defina que nada é de graça, que existe ação e reação, whatever, mas a verdade é que até onde conseguimos perceber / provar, existe um fator sorte considerável. Mas eu também acredito que essa sorte vai se anulando ao longo da vida, isso é, a tendência é que todo mundo tenha oportunidades em alguns momentos e passe perrengues em outros. Muitas vezes o que vai definir o nível de sucesso por essas variações de sorte é a sua atitude, como você se comportou, como você estava preparado para aquele momento. É como se você também precisasse fazer a jogada + ev para lograr sucesso, independentemente do momento da sua sorte. A diferença, talvez, é que o +ev para cada um na vida pode ser completamente diferente, enquanto no poker é bem mais matemático.

- Tudo depende das pessoas
A maioria das jogadas que você deve fazer no poker vai depender do seu adversário. Talvez a maior habilidade que os grandes jogadores tenham é a capacidade de ler oponentes e, consequentemente, suas jogadas, obviamente traduzindo essa leitura em uma melhor postura ou jogada a ser adotada em contrapartida. Em uma mesma mão, com as mesmas cartas, em uma situação muito parecida, é perfeitamente possível que a jogada mais correta a ser feita seja completamente diferente, dependendo do adversário que está se enfrentando. Ser capaz de entender o seu adversário - e para isso é preciso ter sensibilidade, focar no outro, tentar pensar como ele pensa - pode ser a diferença entre um jogador competente e um medíocre.

Cada vez mais fica claro para mim que a habilidade de se relacionar com as pessoas é chave em diversas áreas da vida, inclusive profissional. A diferença para o poker, na minha visão, é que no tocante à vida de maneira geral isso pode ser bem menos utilitarista. Isso é, enquanto no poker a capacidade de compreender seus adversários visa unicamente aumentar seu ganhos, por meio da melhor definição da jogada correta, na vida isso é muito mais aberto. Acredito muito na capacidade de se relacionar melhor com as pessoas por meio da empatia (se colocar no lugar do outro) porque isso melhora o meio social no que você convive, estreita relações, gera confiança, torna você e as pessoas a sua volta mais felizes. Mas as ferramentas que você tem para isso não deixam de ser muito parecidas com as ferramentas usadas no poker: mudar o foco de si para o outro, tentar pensar como ele pensa e abrir seu leque de juízo de valor e preconceitos.

- Ou vai ou racha
Existem alguns momentos em um torneio de poker onde as únicas opções que você tem (ou deveria ter) é ir allin (apostar todas as suas fichas) ou foldar (descartar a sua mão). Isso acontece geralmente quando você tem um stack (a quantidade de fichas que você ainda tem) pequeno, sendo es se "pequeno" definido como algo entre 10 e 12 apostas mínimas (big blinds, daqui pra frente chamado de "bb"). Essa obrigatoriedade advém de uma questão matemática. Um raise (aumento) padrão no poker é de 3 big blind s . Se você, com seu stack de 10bbs, faz um raise padrão, e um oponente volta allin, na pior das hipóteses você precisaria colocar os 7 bbs restantes que você tem para disputar esse pot (o quanto de fichas tem na mesa) de 13,5. A sua porcentagem de ganho entre a sua mão contra o leque de possíveis mãos do adversário faz com que esse call (chamar a aposta que o seu adversário fez) seja quase obrigatória com qualquer mão de maneira que você tenha dado esse raise, de maneira que, na prática, quando você aumentou você já estava apostando todas as suas fichas "meio sem saber" . Sendo assim, seria melhor você mesmo ter ido allin desde o começo, porque assim você maximizaria a chance do seu adversário descartar a mão dele e deixar os blinds para você. Jogadores acostumados com situações de stack pequeno conhecem esse efeito muito bem e lidam com isso da m a neira adequada, adotando o modo "allin ou fold" quando estão com o stack pequeno.

Em determinadas situações da vida é preciso compreender que você já está em modo "allin ou fold", ou melhor traduzindo, "ou vai ou racha". Não porque o resultado que você possa alcançar seja melhor, mas porque é mais saudável e o ajuda a tomar decisões mais acertadas se você reconhecer essa situação como tal. Essa idéia me ocorreu quando estava conversando com um amigo sobre uma garota que trabalhava com ele. A garota era bonita e inteligente, aparentemente dava bola para ele, mas era casada (e ele tinha restrições morais fortes contra ter qualquer envolvimento com pessoas casadas). E aos poucos aquele processo de sedução de ambos os lados ia ganhando forma, sob aquele disfarce (pelo menos para ele, talvez ela já tivesse clareza desde o começo do que queria) de "ah, não to fazendo nada demais, um cafézinho no meio da tarde não representa nada" e assim por diante. No final das contas meu amigo acabou se envolvendo com a moça, e depois, em retrospecto, ficamos discutindo em qual momento aconteceu o "ultrapassar a linha", isso é, em que momento, se ele fosse em frente (aceitasse aquele almoço que ela propôs só os dois em algum lugar bacana, fosse no happy-hour que ela marcou só com as amigas sem o marido etc) a coisa não teria mais volta. Para mim isso tem muita relação com o "allin ou fold". Ao enxergar a linha do "à partir daqui não tem mais volta", sabendo que, naquele momento, apenas 2 escolhas estavam em pauta (ir até o fim ou parar agora), a chance da decisão ser mais adequada com o que você realmente quer é maior. Muitas vezes, nessas situações, vamos nos enganando, achando que apenas mais um passo não causará mal nenhum. É como se, em vez de ir allin, déssemos apenas um raise pequeno. Mas quando o outro volta allin, geralmente vamos dar o call, então...

- Leitura
Tem um pouco a ver com o item anterior "pessoas". Como já dito, uma habilidade especial no poker é leitura de adversários, mas isso pode ser entendido em um item mais específico: leitura de mãos. Um famosíssimo teórico de poker (David Sklansky) estabeleceu uma teoria sobre níveis de leitura que um jogador tem. O nível básico, que podemos chamar de "minha mão é boa?", é a capacidade do jogador de, mesclando suas cartas com as da mesa, saber qual é a força da sua mão: se é a melhor possível, se é muito forte mas vulnerável, se é mediana etc. O nível 1, acima do básico, que podemos chamar de "que mão meu adversário deve ter?" é a aliar o nível básico à habilidade de predizer com certa eficiência que mão seu adversário deve ter; essa predição se dá por conhecer as tendências do seu adversário, interpretar as ações dele em cada rodada de aposta etc, até se chegar a um leque pequeno de possíveis mãos que ele pode, verossilmelmente, ter. O nível 2, que podemos chamar de "o que meu adversário acha que eu tenho", é pensar o que meu adversário deduziu das minhas ações e está imaginando que eu devo ter - nesse nível os blefes bem sucedidos começam, pois posso levar meu oponente a imaginar que eu tenho uma mão diferente da que realmente tenho e, assim, forçá-lo a uma jogada errada. E assim por diante, cada nível estando 1 nível de complexidade acima do outro. (fica até uma história engraçada, porque a partir disso começa a virar um tal de "o que meu adversário acha que eu acho que ele acha que eu acho..."). O mais interessante é que, em termos de leitura, não vale o "quanto maior, melhor", ou seja, não necessariamente o mais complexo trará mais resultados. O ideal é que você jogue com um nível de leitura sempre um nível acima do seu adversário; se seu adversário está operando em nível 1, você deve operar em nível 2 - e assim por diante. Se você está traçando complexos perfis para imaginar o que seu adversário acha que você tem, quando na verdade ele só está preocupado com a mão dele, você vai complexificar demais e acabar tomando a decisão errada, por ex tentando blefar contra um cara que nem percebeu que a mão dele é fraca e pagará qualquer aposta. Claro que um jogador que tenha a complexidade suficiente para atingir níveis mais altos de leitura tem um repertório maior para jogar contra vários tipos de adversário, mas a eficiência do conhecimento se dará com a aplicação correta.

Pensei nesse item em uma aula, onde o professor, que tem pós-doutorado e ministra uma disciplina que envolve vários temas complexos, tem que lidar com perguntas das mais variadas, de alunos de vários níveis e com diversos tipos de referências culturais. A habilidade de, mesmo tendo uma gama enorme de conhecimentos, encarar a pergunta tentando entender o repertório daquele aluno e em qual nível a pergunta dele se encaixa é essencial para uma boa didática. Isso acabou me levando a pensar o como isso não vale para tantas outras situações da vida, onde o conhecimento que nós temos de alguma situação deveria sempre servir como instrumento que será - ou não - usado em uma situação, dependendo de quanto aquilo servir ao propósito do momento. Assim como a hablidade de leitura, o conhecimento só serve ao "quanto mais, melhor" se aliado a habilidade de utilizá-lo. Aposto que você conhece alguém com um repertório cultural grande e que não passa de um grande chato...

sexta-feira, 3 de setembro de 2010

Real Madrid jogando a Libertadores

Esse texto é sobre política, mas pra você que não conhece muito sobre futebol, valem explicações prévias: a Libertadores da América é o torneio sul-americano entre clubes, titulo mais almejado pelos clubes brasileiros. Embora tenha melhorado nesse quesito de uns anos para cá, é um torneio conhecido pela dureza da disputa. A origem disso vem de vários aspectos. Joga-se alguns jogos no seu próprio estádio, outros tantos na casa dos adversários. Quando jogam em casa, os clubes costumam fazer tudo que seja possível para tornar a vida do seu visitante um inferno. Exemplos comuns de estratégia nesse sentido são: na ida para o estádio, o ônibus que leva os jogadores é obrigado a passar pela torcida adversária, sendo devidamente hostilizado; o vestiário que os adversários usarão no estádio está sem condições de uso, as vezes falta água, as vezes demasiadamente sujo; cria-se uma atmosfera de hostilidade tamanha que, provavelmente, os jogadores temem pelo seu bem estar físico; além de também serem influencidados por esse clima e, portanto, costumeiramente acabar beneficiando os times da casa, os juízes também são mais lenientes com a violência e o contato físico nessa competição do que em outras. A lista não pára por aí, mas creio que a idéia esteja clara.
O Real Madrid é um tradicionalíssimo clube espanhol. Você pode imaginar o que seja o futebol europeu, de maneira geral: campos bem cuidados, torcidas bem comportadas, boa organização etc. Na Espanha, em especial, o futebol é menos truncado, há menos contato físico, menos marcação. O Real Madrid caracterizou-se, nos últimos anos, por tentar montar times altamente técnicos, com toque de bola refinado - brasileiros habilidosos preferem ir jogar na Espanha do que na Itália, por exemplo, onde a marcação é mais forte e, portanto, preveligia-se um futebol objetivo em detrimento de habilidade exagerada. Pronto, agora o cenário está completo.

Imagine o Real Madri disputando a libertadores. Na sua primeira experiência jogando no estádio de um adversário, experimenta todo aquele clima de guerra; se revoltam com o tratamento recebido e já entram em campo com a cabeça quente. O campo é horrível e não possibilita um toque de bola, há muito contato físico; o time adversário bate a valer, mas o juíz não toma nenhuma providência. Toma um gol; pensa que dá para recuperar, mas a torcida faz um inferno e empurra o time adversário para frente, que não deixa eles respirarem, e acaba fazendo outro gol; um jogador cai em mais uma provocação do adversário, revida e é expulso - ele não sabe "bater sem ser notado". No jogo da volta, na sua própria casa, aquele clima ameno que é costumeiro nos jogos do futebol espanhol - campo em perfeito estado, torcida comportada. O outro time tem a vantagem conquistada no primeiro jogo e se posta inteiramente na defesa; o Real Madrid tenta atacar, mas quando a defesa adversária não consegue marcar na bola, pára o jogo com faltas, continuamente, a todo momento. O juíz, novamente, não toma nenhuma atitude contra essa anti-desportividade. Aqui e ali só adverte verbalmente, de vez em quando um cartão amarelo, e só. Toda oportunidade que o adversário tem de fazer o jogo parar ele usa: quando um jogador cai no chão só levanta 2 minutos depois, chama o médico para atender uma contusão claramente falsa, o goleiro demora para repor a bola e assim por diante - e o tempo continua rodando. Cada vez mais os jogadores do Real Madrid vão ficando irritados e não conseguem reverter a vantagem - eventualmente outro jogador acaba sendo expulso de campo. No final, o time acaba sendo eliminado da competição. Essa situação se repetiria eternamente até que o clube "aprendesse" a disputar aquela competição; estivesse psicologicamente preparado para o inferno que é jogar fora de casa, reavaliasse as estratégias que iria usar em cada situação e, claro, entendesse que, ali, "fair play" e desportividade não colam - o lema é "salve-se quem puder".

Agora sim a analogia - se o Lula adora fazer analogia futebolísticas, eu também posso. O processo político brasileiro nunca foi coisa para santinhos ou, para ficar na analogia, clima de futebol europeu. Imagino que em nenhum lugar do mundo seja. Mas a partir da década de 90 e, em especial, depois de ganhar as eleições em 2002, o PT consolidou as piores práticas desse processo, institucionalizando-as. Quando era oposição, entre 94 e 2001, apostou no "quanto pior melhor"; opos-se a projetos fundamentais ao Brasil como o Plano Real, a Lei de responsabilidade fiscal, entre outras. Criou a mentira da "privataria" que, apoiada em uma parte ideologizada e desinformada da mídia, tornou-se um mito brasileiro - jogou reputações no lixo. Quando assumiu o poder, passou a usar de todas as prerrogativas para perpetuar-se no poder, quer essas estratégias fossem ou não do jogo democrático. Ninguém é ingênuo de pensar que essas estratégias fossem novas mas, pelo menos desde a abertura do regime democrático, havia alguns limites - um deles era a regra tácita do "foi pego, negão? então sefu, pede para sair". Ou não foi assim com o Maluf? Com Collor? Com Sarney e Jader Barbalho? Com os anões do orçamento? Não é o ideal, mas é um pragmatismo que ajuda o país a caminhar para frente no quesito transparência e ética pública. Quando se aperta o cerco e os políticos ficam com mais medo de ser pegos, se fecham as brechas para a corrupção. E invariavalmente a corrupção vai diminuindo, uma vez que nem em teoria podemos pensar que será completamente extinguida. A novidade do PT foi o, em descoberto um esquema ou uma patifaria, o discurso é "veja bem, não sei se foi bem assim" e deixa no colo da mídia e da população o gosto de "todo mundo fazia ué, agora a gente não pode"...É, não pode, nunca pôde! Enquanto não se descobre, infelizmente não tem como punir. É a institucionalização do abuso, do pode tudo. Foi assim com o mensalão, onde o Zé Dirceu levou a culpa, foi afastado e preservou-se o presidente. No caso do caseiro Francenildo, Palocci precisou apenas de uma saída estratégica, para alguns anos depois voltar com tudo como coordenador da campanha da Dilma. Agora, com a quebra do sigilo dos tucanos, a intenção é justamente de criar, mais uma vez, uma atmosfera de "a gente não sabia de nada" e bola pra frente.

Ao escrever esse texto, a minha intenção original era de criticar a oposição feita ao PT nesses 8 últimos anos, em especial por DEM e PSDB. Acho que sobrou amadorismo político; em vários momentos, o que se quis foi assegurar para si mesmo o monópolio da polidez política. Se um projeto era bom para o país, votava-se junto. Se havia algo a criticar, a crítica era velada, era discreta, não queria se correr o risco de atrair para si a imagem de "oposição histérica". No mensalão, por ex, o cálculo político era que o presidente teria sua popularidade comida pouco a pouco e poderia ser derrotado no processo eleitoral, quando havia elementos de sobra para entrar no impeachment. Para não correr o risco de tornar Lula um mártir, apostou-se em deixar a coisa correr solta e o resto é história. A única exceção que eu me lembre a esse comportamento "certinho" foi na CPMF: deixaram ao governo o custo da decisão de usar truculência política para aprovar a manutenção do imposto ou perder a receita. Oito anos decorrendo, e estamos aí: Lula vai eleger a candidata que bem quis, usando como bem entender a máquina pública e desdenhando da democracia: participa de comícios no exercício do poder, já tomou não sei quantas multas (e desdenha do STE quando as toma), a campanha da Dilma flerta abertamente com esquemas irregulares - como esses da quebra do sigilo - e assim por diante. Não há o menor constrangimento em mentir deslavadamente e usar qualquer instância do Estado - que deveria ser público - em prol de um projeto de poder.

Mas não é só a oposição que entra nesse clima, parece-me que a sociedade, de maneira geral, assumiu isso. Eu acho que boa parte da população incorporou o conceito do "rouba mas faz" - é como se Lula, por conta do bom desempenho da economia e da melhora de renda dos mais pobres, pudesse fazer o que bem entendesse; tudo seria justificável. Mas não é só isso; outra parte da população ainda se comporta como o Real Madrid jogando a libertadores; é como se fosse tão esquisito acreditar que alguém pudesse jogar tão sujo, que o benefício da dúvida prevalece ad eternum. Vejo comentaristas na mídia - vários - conseguindo declarar coisas do tipo "não há evidências de que há relação entre a quebra do sigilo e o comando da campanha da Dilma". Catso, que outras evidências vocês querem? Recibos? Atas de reunião? Um e-mail da Dilma pedindo expressamente isso? Já não bastou mensalão, aloprados, caso do caseiro e tantos outros para perder a ingenuidade de achar que o PT vai se limitar ao jogo limpo do processo democrático? Quando o Real Madrid acordar, já vai ter pedido tantos campeonatos, e a regra do campeonato vai estar tão diferente que provavelmente nem poderá mais chamar-se aquele esporte de futebol.

quinta-feira, 2 de setembro de 2010

Sobre a diferença entre bolsa-escola e bolsa-família.

Em tempos de presidente com 80% de aprovação e eleição virtualmente decidida, com candidata cujo único mérito é ter sido a escolhida "pelo cara" - ou, se lembrarmos de Dirceu e Pallocci, a única que sobreviveu para ser escolhida - o assunto "bolsa-família" volta à tônica. O programa é uma consolidação de programas sociais, relacionados à transferência direta de renda, do governo anterior, que o governo atual consolidou embaixo de um mesmo guarda-chuva e ampliou bastante o número de beneficiários. É tentador - e muita gente já o fez - atribuir o estabelecimento dessa rede de transferência à popularidade do governo. Por minha vez, apesar de entender que esse seja sim um fator forte, acho que a questão do desenvolvimento aparente da economia (independente das questões que estão por trás desse desenvolvimento) associada ao carisma espetacular do presidente sejam fatores até mais importantes.
O programa do governo anterior mais associado como "precursor" do bolsa-família era o chamado bolsa-escola que, em linhas gerais, pagava um certo valor mensal para pais que tivessem filhos em idade escolar e cujos filhos mantivessem uma frequência mínima à escola. A idéia óbvia era criar um estímulo financeiro para combater uma situação muito comum nas camadas menos favorecidas da população de "não incentivo" das crianças de continuarem seu estudos, pelos mais diversos motivos: ou porque tem que trabalhar para contribuir com a parca renda familiar, ou porque a logística familiar seja complicada para que os filhos estudem etc. Os críticos da nova versão do programa apontam justamente o que seria a "falta de porta de saída" do programa; como o programa atual é uma transferência direta de renda aos mais pobres, sem exigências maiores para que os beneficiários recebam a quantia, não existiria um horizonte para que o beneficiário pudesse, em algum momento, caminhar com as próprias pernas - ficaria sempre dependente do governo para complementar a sua renda. E justamente por isso o programa teria um efeito eleitoral monumental. Eu sou simpático a essa crítica, mas não posso deixar de discordar em um certo ponto: o bolsa-escola, em certo nível, também não apresentava porta de saída a nível individual - a porta de saída era a nível social e, talvez, familiar. Quer dizer, manter crianças na escola é fundamental para o desenvolvimento de uma sociedade em um horizonte de, digamos, 30 anos. Mas o que faria aquele pai que recebia o recurso quando o filho se formasse? Não estaria ele também dependente dessa ajuda? Talvez o conceito tenha sido de que o filho, uma vez conseguido se formar, teria melhores condições de sustentar agora a sua família; mas ainda sim existe o excesso de confiança de uma política pública em um determinado senso moral familiar que, afinal, pode ser bem contraditório. Dizem alguns analistas que, durante os últimos anos, o programa também perdeu em eficiência de controle, cadastros etc, e ganhou em corrupção. Bom, não sendo um especialista da área não posso corroborar essa idéia, o que me deixa com a principal diferença entre o primeiro modelo - bolsa escola - e o programa atual, que é a questão ideológica de relação Estado x sociedade que se estabelece em cada caso.

No primeiro caso, temos o Estado organizando a vida social, interferindo diretamente numa esfera individual ou familiar para direcionar a sociedade para um horizonte que considera-se melhor. Em outras palavras, imaginando que o Estado fosse uma entidade personificada, é como se essa entidade se dirigisse ao pai de familia: "olha, cara, eu sei que a gente vive num país injusto para cacete, onde poucas pessoas tem acesso as melhores oportunidades e a maioria tem acesso a quase nada; eu entendo que você e a sua família tem de se matar para conseguir uns trocados e conseguir viver com alguma digOidade até o final do mês, e que para você, hoje, é mais importante os cinquenta reais que seu filho contribui na renda da família do que o moleque ir para escola; mas a gente não quer que você sacrifique o futuro do seu filho por isso; a gente tá tentando, de alguma maneira, reverter esse ciclo vicioso que vai perpetuar a pobreza na sua família e/ou na sua região. Se seu filho for para a escola, não será tudo resolvido; ainda sim a vida dele vai ser difícil para caramba, ainda sim ele não terá as mesmas oportunidades dos mais ricos, mas é um começo. Se ele não for é que é certeza de que ele não terá oportunidade nenhuma". E aí o Estado está comprando, subornando mesmo, esse pai para que ele não f* a vida do filho. Se a gente vivesse em uma sociedade indígena onde, no geral, a responsabilidade de formação do indivíduo não recai especialmente sobre os pais biológicos, talvez nem precisasse disso. Mas na nossa cultura os pais são os diretos responsáveis por isso, e quando a coisa encrenca o Estado deve achar uma forma de intervir.

No modelo atual, usando a mesma metáfora, é como se o Estado dissesse "olha, eu sei que a sua vida é sofrida, que você é pobre, então vou te dar essa quantia por mês para que você tenha alguma dignidade. Eu não tenho data para parar de te dar essa grana, então você não precisa se preocupar com isso". Subentendido nessa situação - ou não tão subentendido assim, dado a propaganda governamental e a personificação de "pai do povo" na imagem do presidente - fica a idéia de "o presidente está dando dinheiro para gente". Assim como o bolsa-escola, não resolve, mas cria uma relação absolutamente inadaquada entre Estado e sociedade. O Estado não está direcionando nada, não tem nenhuma política pública por trás disso. Se, na prática, alivia a situação dessas pessoas (e talvez se eu fosse beneficiário eu pensasse de outra forma), na teoria é a pura aceitação do governo da sua própria incapacidade de mudar a situação de maneira sustentável. O discurso do estado personificado que não está sendo expresso é "nos últimos 8 anos, a educação de base não melhorou nada, seu filho não tá tendo uma educação melhor; embora a economia tenha crescido, cresceu menos do que os outros países em desenvolvimento, e na prática o país se desindustrializou. Investiu-se menos em infra-estrutura nos últimos 8 anos do que nos 12 que nos sucederam. O horizonte é meio sombrio, o país não tem a menor condição de crescer, nos próximos anos, de maneira sustentável. Não há motivo para achar que essa situação seja temporária; não estamos criando as condições para que você, desempregado e desqualificado, se vire com as suas próprias pernas daqui a um tempo. Mas enquanto papai estiver por aqui você está a salvo". O perigo de associação direta do governante ao benefício já existia no programa anterior; o que me parece ter havido de novidade são 3 aspectos importantes: a exploração nua e crua dessa relação por esse governo, o carisma claramente superior do atual presidente em relação ao antigo e, em especial, a falta de uma justificativa moral e social para esse risco.

Os de direita condenam o programa por ser uma compra direta de votos. Os de esquerda condenam porque seria um instrumento de alienação, uma ferramenta do capitalismo para arrefecer protestos e perpetuar o próprio capitalismo. E o todos os brasileiros se afundam por mais (pelo menos) quatro anos no populismo imbecilizante.