quinta-feira, 2 de setembro de 2010

Sobre a diferença entre bolsa-escola e bolsa-família.

Em tempos de presidente com 80% de aprovação e eleição virtualmente decidida, com candidata cujo único mérito é ter sido a escolhida "pelo cara" - ou, se lembrarmos de Dirceu e Pallocci, a única que sobreviveu para ser escolhida - o assunto "bolsa-família" volta à tônica. O programa é uma consolidação de programas sociais, relacionados à transferência direta de renda, do governo anterior, que o governo atual consolidou embaixo de um mesmo guarda-chuva e ampliou bastante o número de beneficiários. É tentador - e muita gente já o fez - atribuir o estabelecimento dessa rede de transferência à popularidade do governo. Por minha vez, apesar de entender que esse seja sim um fator forte, acho que a questão do desenvolvimento aparente da economia (independente das questões que estão por trás desse desenvolvimento) associada ao carisma espetacular do presidente sejam fatores até mais importantes.
O programa do governo anterior mais associado como "precursor" do bolsa-família era o chamado bolsa-escola que, em linhas gerais, pagava um certo valor mensal para pais que tivessem filhos em idade escolar e cujos filhos mantivessem uma frequência mínima à escola. A idéia óbvia era criar um estímulo financeiro para combater uma situação muito comum nas camadas menos favorecidas da população de "não incentivo" das crianças de continuarem seu estudos, pelos mais diversos motivos: ou porque tem que trabalhar para contribuir com a parca renda familiar, ou porque a logística familiar seja complicada para que os filhos estudem etc. Os críticos da nova versão do programa apontam justamente o que seria a "falta de porta de saída" do programa; como o programa atual é uma transferência direta de renda aos mais pobres, sem exigências maiores para que os beneficiários recebam a quantia, não existiria um horizonte para que o beneficiário pudesse, em algum momento, caminhar com as próprias pernas - ficaria sempre dependente do governo para complementar a sua renda. E justamente por isso o programa teria um efeito eleitoral monumental. Eu sou simpático a essa crítica, mas não posso deixar de discordar em um certo ponto: o bolsa-escola, em certo nível, também não apresentava porta de saída a nível individual - a porta de saída era a nível social e, talvez, familiar. Quer dizer, manter crianças na escola é fundamental para o desenvolvimento de uma sociedade em um horizonte de, digamos, 30 anos. Mas o que faria aquele pai que recebia o recurso quando o filho se formasse? Não estaria ele também dependente dessa ajuda? Talvez o conceito tenha sido de que o filho, uma vez conseguido se formar, teria melhores condições de sustentar agora a sua família; mas ainda sim existe o excesso de confiança de uma política pública em um determinado senso moral familiar que, afinal, pode ser bem contraditório. Dizem alguns analistas que, durante os últimos anos, o programa também perdeu em eficiência de controle, cadastros etc, e ganhou em corrupção. Bom, não sendo um especialista da área não posso corroborar essa idéia, o que me deixa com a principal diferença entre o primeiro modelo - bolsa escola - e o programa atual, que é a questão ideológica de relação Estado x sociedade que se estabelece em cada caso.

No primeiro caso, temos o Estado organizando a vida social, interferindo diretamente numa esfera individual ou familiar para direcionar a sociedade para um horizonte que considera-se melhor. Em outras palavras, imaginando que o Estado fosse uma entidade personificada, é como se essa entidade se dirigisse ao pai de familia: "olha, cara, eu sei que a gente vive num país injusto para cacete, onde poucas pessoas tem acesso as melhores oportunidades e a maioria tem acesso a quase nada; eu entendo que você e a sua família tem de se matar para conseguir uns trocados e conseguir viver com alguma digOidade até o final do mês, e que para você, hoje, é mais importante os cinquenta reais que seu filho contribui na renda da família do que o moleque ir para escola; mas a gente não quer que você sacrifique o futuro do seu filho por isso; a gente tá tentando, de alguma maneira, reverter esse ciclo vicioso que vai perpetuar a pobreza na sua família e/ou na sua região. Se seu filho for para a escola, não será tudo resolvido; ainda sim a vida dele vai ser difícil para caramba, ainda sim ele não terá as mesmas oportunidades dos mais ricos, mas é um começo. Se ele não for é que é certeza de que ele não terá oportunidade nenhuma". E aí o Estado está comprando, subornando mesmo, esse pai para que ele não f* a vida do filho. Se a gente vivesse em uma sociedade indígena onde, no geral, a responsabilidade de formação do indivíduo não recai especialmente sobre os pais biológicos, talvez nem precisasse disso. Mas na nossa cultura os pais são os diretos responsáveis por isso, e quando a coisa encrenca o Estado deve achar uma forma de intervir.

No modelo atual, usando a mesma metáfora, é como se o Estado dissesse "olha, eu sei que a sua vida é sofrida, que você é pobre, então vou te dar essa quantia por mês para que você tenha alguma dignidade. Eu não tenho data para parar de te dar essa grana, então você não precisa se preocupar com isso". Subentendido nessa situação - ou não tão subentendido assim, dado a propaganda governamental e a personificação de "pai do povo" na imagem do presidente - fica a idéia de "o presidente está dando dinheiro para gente". Assim como o bolsa-escola, não resolve, mas cria uma relação absolutamente inadaquada entre Estado e sociedade. O Estado não está direcionando nada, não tem nenhuma política pública por trás disso. Se, na prática, alivia a situação dessas pessoas (e talvez se eu fosse beneficiário eu pensasse de outra forma), na teoria é a pura aceitação do governo da sua própria incapacidade de mudar a situação de maneira sustentável. O discurso do estado personificado que não está sendo expresso é "nos últimos 8 anos, a educação de base não melhorou nada, seu filho não tá tendo uma educação melhor; embora a economia tenha crescido, cresceu menos do que os outros países em desenvolvimento, e na prática o país se desindustrializou. Investiu-se menos em infra-estrutura nos últimos 8 anos do que nos 12 que nos sucederam. O horizonte é meio sombrio, o país não tem a menor condição de crescer, nos próximos anos, de maneira sustentável. Não há motivo para achar que essa situação seja temporária; não estamos criando as condições para que você, desempregado e desqualificado, se vire com as suas próprias pernas daqui a um tempo. Mas enquanto papai estiver por aqui você está a salvo". O perigo de associação direta do governante ao benefício já existia no programa anterior; o que me parece ter havido de novidade são 3 aspectos importantes: a exploração nua e crua dessa relação por esse governo, o carisma claramente superior do atual presidente em relação ao antigo e, em especial, a falta de uma justificativa moral e social para esse risco.

Os de direita condenam o programa por ser uma compra direta de votos. Os de esquerda condenam porque seria um instrumento de alienação, uma ferramenta do capitalismo para arrefecer protestos e perpetuar o próprio capitalismo. E o todos os brasileiros se afundam por mais (pelo menos) quatro anos no populismo imbecilizante.

2 comentários:

  1. A secretária nacional de Renda e Cidadania do Ministério do Desenvolvimento Social e Combate à Fome, Rosani Cunha, afirmou que a principal diferença entre o Bolsa Escola e o Bolsa Família é o grau de exigência. No Bolsa Família, além da freqüência escolar, são acompanhados a vacinação das crianças até 7 anos de idade, o crescimento e desenvolvimento das crianças e a atenção às mulheres grávidas.

    “É importante integrar o acompanhamento nas duas áreas: manter a criança na escola e também o atendimento de saúde dela em dia”, argumentou. Ela ressaltou ainda que, para continuarem a receber o Bolsa Família, os beneficiários precisam provar que os filhos estejam matriculados em uma escola e compareçam a pelo menos 85% das aulas.

    Segundo o Ministério do Desenvolvimento Social, 79% dos cerca de 15 milhões de alunos atendidos pelo programa já têm a freqüência escolar acompanhada individualmente. Desse total, apenas 2,13% dos alunos apresentaram freqüência inferior a 85% das aulas.

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  2. Lula também diz que o mensalão não existiu; a Dilma fala que o PAC é um sucesso e lançou o PAC 2; o Haddad acha o Enem um sucesso. Regra número 1 do governo Lula: não acredite no que o governo fala...

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