quinta-feira, 24 de março de 2011

Sobre ganhos e gastos

Uma vez, em uma conversa com meu irmão e com meu pai, não sei porque o assunto estava em planejamento financeiro, e em algum momento eu falei "pois é, porque sempre se deve ganhar mais do que se gasta...". E eles me olharam com uma cara esquisita, e um deles respondeu "não né, é o contrário, gastar menos do que se ganha", no qual o outro, no mesmo momento, concordou. Claro, a curto prazo, em qualquer planejamento financeiro tem-se muito mais controle sobre o quanto se gasta do que quanto se ganha; a variável "ganhos" é incontrolável: você tem o seu salário, ou o quanto a sua empresa consegue faturar, ou quantos clientes você tem etc - embora você sempre esteja fazendo esforço para aumentar a sua renda, os resultados serão sempre indiretos e a longo prazo. Agora, sobre os seus gastos você pode atuar da maneira que bem entender.
Mas não foi bem aquilo que eu quis dizer - talvez não tivesse a ver com a conversa do momento, mas era uma idéia que estava na minha cabeça. Tratando-se de filosofia de vida - e não de planejamento financeiro puro e simples - acho que a gente não lida com essa questão de ganho x gasto de uma maneira adequada. A maneira mais comum de se lidar com essa questão é como se a variável "ganhos" fosse a variável indepedente (a qual você não controla, cujo resultado será sempre um dado para você) e a variável "gastos" fosse a dependente, ou seja, a que deverá ser ajustada conforme a primeira variável. Dependendo de quanto eu ganho, eu decido quanto gastar. Faz muito sentido - e aliás, quem não faz isso, deve estar com sérios problemas financeiros! - mas acho que isso gera um problema, embora óbvio, pouco visível.

Acho que meus avôs tinham muito medo de passar fome; de a situação econômica deles se deteriorar a tal ponto de não ter comida para por na mesa. Não era um medo particular deles, era o medo de toda uma geração de um país onde muito poucos eram "doutores" e a imensa maioria era uma grande classe média baixa. 40 anos de crescimento econômico depois, existem muitas diferenças no horizonte econômico que a minha geração está inserida. (Claro que, num país como o Brasil, altamente desigual, existem diferenças de horizontes gritantes de acordo com a classe social - aqui estou me referindo à classe social na qual eu e a maioria dos meus amigos está inserida). O risco de "passar fome" é muito menor do que era no passado; há uma classe média pujante no Brasil. Pessoas com uma boa formação, em faculdades de primeira linha, falando uma ou duas línguas estrangeiras, com alguma experiência em uma ou duas funções, e com disponibilidade de trabalhar, dificilmente vão passar fome. Há crises econômicas, há desemprego para trabalhadores de mais idade, sim, há isso tudo; o que estou querendo dizer é que o risco que esse grupo de pessoas está exposto não é o de total aniquilamento econômico - passar fome, ir morar embaixo da ponte. É o risco do fracasso; é o risco de não ser bem-sucedido, de ganhar pouco e contar os centavos no final do mês, de ter dificuldade de pagar o colégio dos filhos, de não fazer viagens de férias legais, de ficar 10 anos sem poder trocar de carro. Quando alguém dessa classe se mata para se qualificar melhor para o futuro, lambe o saco do chefe para ficar bem na foto e toma outras atitudes para "preservar a carreira", é nisso que está pensando. Esse medo pode vir até camuflado do medo de perder o emprego e nunca mais arrumar outro, mas no fundo esse não é um medo realista - já o medo de demorar 2 anos para arrumar algo e ter que aceitar um emprego ganhando metade do que ganha hoje, sim. Uma brincadeira entre minha irmã e eu é que "se tudo der errado, eu presto concurso público" - e no final, essa é uma saída mesmo - para quem uma boa formação e sempre esteve acostumado a estudar é mais fácil.

Isso tudo para dizer que, para a maioria das pessoas que eu convivo, a busca de melhoria financeira é muito menos uma necessidade primária e mais a busca de mais conforto - não, por isso, menos válido. E aí, voltando para o começo da conversa, o gasto vai sempre acompanhando o aumento gradual do ganho. Quantas vezes você não já viu - ou viveu - aquela situação: a pessoa tem aumento de salário, nos primeiros 2 meses é uma beleza, mas no terceiro mês já aumentou seu gastos proporcionalmente e continua não sobrando nada no final do mês? Meu gasto está totalmente balizado pelo meu ganho - para cima, que é absolutamente compreensível, mas também para baixo: porque gastar menos se eu posso gastar mais? Se ganhar dinheiro segue a lógica do "quanto mais melhor", e o gasto vai sempre acompanhando a renda, então "quanto mais ganho, mais gasto". Um raciocínio que eu mesmo já usei muitas vezes é aquele do "ah, é para isso que eu trabalho tanto" para justificar um consumo (uma roupa, um restaurante mais caro) fora do meu nível de consumo habitual. O ser-humano se habitua a qualquer coisa, mas se habitua mais rapidamente ao que é confortável - rapidamente você já está habituado aquele nível de conforto que o seu nível de renda atual consegue proporcionar.

Agora, o quadro está completo: o sujeito começou a sua vida profissional da maneira que todo mundo começa - por exemplo, arrumou um estágio enquanto fazia a faculdade. Foi indo, em algum momento foi efetivado, ficou feliz com seu salário aumentado. Mudou de empresa, foi promovido, gradualmente sua renda foi melhorando e, naturalmente, o nível de consumo acompanhou a melhora da renda. No começo alguns aumentos de gastos tinham aquela lógica do "é para isso que eu trabalho", depois foi se acostumando com aquele padrão de consumo.Só conseguia aguentar a volta para casa depois de 10h de trabalho porque seu carro era novo e confortável. Vestir aquele terno legal e sentir-se bonito / importante compensava um pouco o mal-estar. Jantar em um bom restaurante tomando um bom vinho trazia uma alegria que dava ânimo para continuar. Em suma, o padrão de consumo passou a ser o que fazia o sujeito suportar o desgaste do trabalho. Só que, ao passar do tempo, o que era consequência passa a ser causa: trabalha-se para manter aquele padrão. Quando o sujeito sente-se cansado e cogita a idéia de tentar uma mudança, todo aquele padrão cristalizou-se e ele acredita, piamente, que precisa daquilo tudo para viver. O que iniciou-se como uma recompensa passa a ser premissa.

Eu sei que é utópico, extramamente hipotético. Mas a dinâmica renda x outros fatores poderia ser sim uma via de influência recíproca. Todo mundo quer ganhar mais; mas se meus gastos estão estabelecidos pelo que faz sentido para mim - e não pelo "quanto mais melhor", fica mais fácil dosar melhor o quanto de esforço e sacrifício está sendo feito por aquele dinheiro.

2 comentários:

  1. fala gordão! fazendo um grande esforço para não cair na armadilha de apenas defender meu ponto de vista, a mim, me parece que o que vc descreveu faz total sentido...caso a vida fosse vivida em um laboratório..

    texto muito bem escrito!

    bjão

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  2. é, eu realizo a pouca viabilidade prática da coisa...mas utopias, nem por isso, não devem ser pensadas / propostas, né...bjo!

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