quarta-feira, 6 de outubro de 2010

Sobre aborto

Em épocas de discussão política sobre posicionamento a respeito do aborto, esse assunto volta à tona. A minha posição atual sobre o assunto é: sou contra a descriminalização do aborto. E não, não sou relioso, católico, evangélico etc. E a minha opinião é baseada em uma premissa básica: para mudar a legislação e, em especial, sendo essa mudança, a princípio, em confronto contra um princípio básico da nossa constituição (o respeito absoluto à vida), precisamos de um motivo muito forte. E até agora tudo o que eu ouvi são uma série de mistificações e uso frágil de estatísticas. Nas duas exceções que a legislação já prevê (risco de vida para a mãe e estupro) já existem essas considerações; no primeiro, é uma vida pela outra (assim como temos o direito de legítima defesa); no segundo, embora filosoficamente mais discutível, na prática acaba fazendo todo o sentido - acho difícil alguém, mesmo muito religioso, ser contra o aborto se a sua própria filha fosse estuprada, por ex.

Os favoráveis a tese da descriminalização costumam apontar, vorazmente, a interferência da religião em uma questão que deveria ser guiada por princípios laicos. E eu atesto que a religião não precisa ter absolutamente nada com isso. Quer dizer, algum prisma você deve adotar: o prisma religioso, o da sua própria moral, o jurídico, enfim, você escolhe. Mas algum prisma deve ser escolhido, em especial para responder a seguinte pergunta: feto é vida? Em que momento aquela "entidade" (por falta de termo isento melhor para caracterizar) pode ser entendido como vida? Claro, porque a decorrência natural dessa resposta é que, após aquele momento, interromper a gravidez é sim, sem dúvida, matar alguém. Há discussões por todo o mundo a respeito disso - só é vida quando o encéfalo está desenvolvido, ou começa na hora da concepção, enfim. Não há cientificidade capaz de dar uma resposta objetiva e não passível de contestação. No final, a partir da concepção, se nada interferir esse embrião vai se desenvolver e, nove meses depois, teremos um recém-nascido, correto? Então masturbação mental a parte, entendo que à partir da concepção, temos uma vida. É a premissa que escolhi para estabelecer a minha opinião.

Isso posto, o que temos é a discussão de permitir, legalmente, em constituição, o ato de matar, para ter algum benefício de cunho prático. O principal argumento seria de que, na prática, as pessoas já fazem mesmo, então a legislação é hipócrita. Do ponto de vista conceitual e lógico a tese é ridiculamente frágil; no extremo, todo crime que não se consegue coibir deve ser, então, liberado? É a mesma tese da liberação das drogas, correto? (coerente é a pessoa que adota o mesmo posicionamento nos dois casos). A legislação não está lá para acompanhar a prática, e sim como uma espécie de parâmetro a ser alcançado. Não que não possa haver tantos outros argumentos para quem defende essa posição, apenas esse argumento parece-me, na origem, muito fraco.

Aí entra a outra questão: o pragmatismo, a utilidade prática. A alegação é que, legislação como está, há um apartheid médico na questão: ricos tem acesso a clínicas ilegais, enquanto pobres se ferram fazendo aborto com medicamento, agulhas e outras atrocidades. Torna-se uma questão de saúde pública. Ah tá, então no Brasil a diferença de acesso a serviços médicos entre as mais variadas classes sociais é só no aborto e nasce, exclusivamente, da legislação? Não é ilegal fazer um transplante, mas vai ver a diferença de facilidade e qualidade que ricos e pobres fazem o procedimento. Poderia citar outros inúmeros exemplos. Se estamos falando de vida prática, de pragmatismo, tem que ser olhar par atudo. O sistema de saúde brasileiro, de forma geral e com raras exceções, é pracaríssimo. Pessoas esperam horas para serem atendidas, seja um resfriado ou um ataque cardíaco. Esperam meses por um exame que pode ser a diferença entre um tratamento de sucesso ou não. Esperam mais de ano por uma cirurgia que seria fundamental na sua qualidade de vida. Precisamos mudar isso, mas vai levar anos. Agora, mudar a legislação vai resolver o problema das mulheres pobres que querem fazer aborto? O sistema de saúde já não consegue dar conta de uma série de necessidades básicas da população, e estamos apostando nele para resolver mais esse problema? Quanto não pragmático nem prático é esse aposta? Com a campanha política veio a tona outro tema: 50% da população brasileira não tem saneamento básico e 60% dos atendimentos no sistema de saúde poderiam ser evitados com saneamento! E estamos contando com esse sistema de saúde para resolver o problema das mulheres pobres que decidem abortar...Se estivéssemos na Suécia, com um sistema de saúde eficiente e perfeitamente capaz de resolver esse problema, eu teria outra opinião sobre o tema? Provavelmente não, mas a discussão teoria x prática faria algum sentido.

No final das contas, é admitir na legislação uma permissão para matar sem contrapartida. Ricos continuarão fazendo seus abortos em clínicas de qualidade, pobres continuarão fazendo seus abortos de forma precária. Veja bem, eu nao sou contra a escolha. Alguém pode fumar seu baseado e ainda sim não ser a favor da descriminalização das drogas. Posso guiar meio bêbado depois de um happy-hour e ainda sim achar que a legislação de trânsito deva ser rígida contra motoristas alcoolizados. Tomar decisões, eventualmente, à margem da lei não tem nada a ver com qual princípio deva organizar a sociedade como um todo - e é disso de que se trata legislação. Estabelecer na nossa constituição essa permissão para matar sem nenhuma contrapartida importante me parece de um sem sentido infindável.

2 comentários:

  1. Não sei se concordo com seus argumentos mas tenho que admitir que o texto está muito bem escrito.Parabéns.

    Vc também é contra as pesquisas com celulas tronco?

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  2. eu conheço pouco sobre o assunto, mas até onde eu sei as pesquisas são feitas com embriões que não serão gestados. Aí o problema viria antes: teria de se impedir a geração desses embriões para inseminação artificial pq, seguindo a premissa que assumi no texto, também seriam vidas...filosoficamente caíria no mesmo problema, mas na prática é uma situação implantada, o problema das pesquisas com esses embriões é marginal a essa situação. então, a princípio, não sou contra...

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